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Rasgai o coração e não as vestes


Na Liturgia da Quarta-feira de Cinzas que abre o Tempo da Quaresma, encontramos um apelo instigante dirigido pelo profeta Joel ao povo de Israel, que deve dar a tônica de toda vivência dos exercícios quaresmais: “Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes, retornai a Iahweh, vosso Deus, porque ele é bondoso e misericordioso, lento para a ira e cheio de amor, e se compadece na desgraça” (Jl 2,13).

O profeta Joel evoca um costume muito comum entre os judeus de rasgarem a própria veste para expressarem emoções fortes (cf. 2Sm 13,31; 2Rs 18,37), o arrependimento (cf. 2Rs 22,11.18-20) ou o protesto diante de alguma blasfêmia (cf. Mt 26,65), a fim de chamar a atenção para o verdadeiro processo de conversão e arrependimento que Deus quer realizar no coração do ser humano. Trata-se de um apelo à conversão interior, já que a verdadeira conversão deve ultrapassar as práticas externas e chegar às profundezas do coração, pois “é do coração que procedem as más intenções, assassínios, adultérios, prostituição, roubos, falsos testemunhos e difamações” (Mt 15,19).

Também Jesus nos evangelhos, ao evocar os gestos de conversão e arrependimento da piedade judaica: jejum, oração, esmola, chama a atenção para a superficialidade das práticas externas e convida a uma nova maneira de praticar os exercícios de piedade, que devem ter a marca da discrição e do segredo (cf. Mt 6, 2- 6.16-18). Com isso, Jesus quer denunciar a hipocrisia que facilmente pode tomar lugar nas práticas religiosas, e nos convidar a confiarmos na misericórdia do Pai, que conhece tudo o que se passa em segredo em nosso coração, ou seja, as nossas motivações mais profundas. Por outro lado, Jesus quer chamar a atenção para o modo como poderemos fazer verdadeiro encontro com Deus e com os irmãos, isto é, as práticas religiosas que fazemos não podem estar desconectadas do compromisso pela promoção da justiça e pela prática da caridade ao nosso próximo: “Quem jejua, pense no sentido do jejum; seja sensível a fome dos outros quem deseja que Deus seja sensível à sua; seja misericordioso quem deseja alcançar misericórdia; quem pede compaixão, também compadeça; quem quer ser ajudado, ajude os outros. Muito mal suplica quem nega aos outros aquilo que pede para si” (São Pedro Crisólogo).

A Quaresma é o tempo favorável para refazermos o caminho e nos dispormos à conversão. Todo o itinerário quaresmal é marcado por palavras e gestos que evocam o arrependimento e a conversão. Trata-se de um verdadeiro percurso de retorno a Deus a partir do coração (cf. Jl 2,12). Para nos ajudar nesse percurso, a Igreja retoma as práticas da piedade judaica (jejum-oração- esmola), que foram valorizadas e ressignificadas por Jesus. Através destes três exercícios, o cristão pode fazer uma revisão da própria vida e de suas relações fundamentais, a saber: o relacionamento com Deus; consigo mesmo; com os irmãos e o relacionamento com a natureza. Estas práticas de penitência nos ajudam a compreender que a conversão não é algo mágico, que acontece de uma só vez, nem se confunde com mera atitude exterior, sem ressonâncias concretas em nossa vida, ou ainda, se direciona apenas alguns setores da nossa vida, mas nos fazem compreender que a conversão é um caminho incessante de volta para Deus, que deve envolver a totalidade da existência. Mais importante que os sinais externos deve ser a abertura sincera do coração, confessando nossa fraqueza e miséria, “rasgando nosso coração” diante de Deus, sem superficialidades e hipocrisia, para que Deus entre nele e assuma o controle de nossa vida, extirpando a raiz do mal que nos separa d’Ele.

Fráter Rodrigo Costa, C.Ss.R.


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