Tradição de Deus, tradições humanas: a vivência do depósito da fé
A única maneira de dizer a mesma coisa num contexto que mudou é dizê-lo de modo diferente. A tradição é memória que permite um enriquecimento da experiência. (Y. Congar)
A palavra e o conceito de Tradição não são uma novidade na caminhada de dois milênios da Igreja. No entanto, nas últimas décadas, precisamente depois do Concilio Vaticano II, adotou-se uma linha que distingue o termo Tradição, com maiúscula e no singular, e os termos tradição e tradições, com minúscula e/ou no plural. Essa distinção evidencia melhor a diferença entre o conceito teológico de Tradição e o uso comum da palavra tradição. Como vimos, o Vaticano II substituiu as “tradições” de Trento pela “Tradição”, fazendo cair a ideia de Tradição como “transmissão de coisas” para ceder espaço, em seu lugar, ao processo ativo e constante da transmissão da fé. A constituição que nos apresenta essa novidade é a Dei Verbum. Nela encontramos, em três momentos, um conceito teológico bem elaborado de Tradição. Primeiramente, Tradição como diálogo entre Deus e a Igreja: “Mediante a mesma Tradição, […] Deus, que outrora falou, dialoga sem interrupção com a esposa do seu amado Filho” (n. 8). Depois a certeza de que a Tradição é viva: “A Tradição Apostólica progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo” (n. 8). E, por fim, a Tradição como Palavra de Deus: “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da Palavra de Deus, confiado à Igreja” (n. 10). Assim, fica muito clara uma afirmação do relatório de Montreal, na 4° Conferência Mundial de Fé e Constituição: “A Tradição da Igreja não é um objeto que possuímos, mas uma realidade pela qual somos possuídos”. Essa distinção foi tão bem aceita que até o Catecismo da Igreja Católica incorporou o conceito teológico de Tradição diferente do uso comum da palavra tradição: A Tradição da qual aqui falamos é a que vem dos apóstolos e transmite o que estes receberam do ensinamento e do exemplo de Jesus e o que receberam por meio do Espírito Santo. Com efeito, a primeira geração de cristãos ainda não dispunha de um Novo Testamento escrito, e o próprio Novo Testamento atesta o processo da Tradição viva. Dela é preciso distinguir as tradições teológicas, disciplinares, litúrgicas ou devocionais surgidas ao longo do tempo nas Igrejas locais. Constituem elas formas particulares sob as quais a grande Tradição recebe expressões adaptadas aos diversos lugares e às diversas épocas. É à luz da grande Tradição que estas [as tradições] podem ser mantidas, modificadas ou mesmo abandonadas, sob a guia do Magistério da Igreja (Catecismo da Igreja Católica, n. 83). A compreensão pós-conciliar de Tradição nos mostra que, nela, é o próprio Deus quem se revela. Ele fala com as pessoas no seu tempo. Tradição é uma revelação viva, situada no presente, em comunhão com a fé apostólica, conservada durante todos esses anos pela comunidade de fé. Por isso o conceito teológico de Tradição passa muito longe do uso comum da palavra tradição. O dicionário Aurélio a conceitua assim: 1.Ato de transmitir ou entregar. 2. Transmissão oral de lendas, mitos, fatos, etc., de idade em idade, geração em geração. 3. Conhecimento ou prática resultante de transmissão oral ou de hábitos inveterados. Hoje em dia, com o avanço dos estudos bíblicos, dizemos sem escrúpulos que a Bíblia é Palavra de Deus, porém em linguagem humana. Assim também é a Tradição; ela precisa de tradições para ser preservada e manifestada. Por um lado, isso é positivo; por meio das tradições, podemos conhecer a Tradição, ter acesso à autocomunicação divina. Por outro, corre-se o risco de se fixar nas tradições, que podem se corromper, entrar em declínio, não mais dizer da presença continuada de Cristo na Igreja. Daí a necessidade da renovação das tradições, que podem caducar e não significar nada para as novas gerações. Um conhecido autor de nome O’Collins, em seu livro Teologia Fundamental, traz uma bela reflexão sobre a realidade humana da tradição. Para ele, tradição é um termo que “pertence essencialmente à existência social e histórica de todos os seres humanos”. É uma realidade humana para assegurar a continuidade, formar identidade e unidade de uma sociedade. A comunidade cristã, como toda sociedade humana, ao longo da história, de várias maneiras, registra e transmite a experiência vivida desde suas origens. Escrituras, doutrinas, liturgias, forma organizacional etc. O precioso tesouro da Tradição ganha visibilidade nas tradições. Quando as tradições correspondem à nossa realidade, às nossas experiências existenciais mais profundas, elas nos ajudam a viver uma fé autêntica, genuinamente cristã. Também nos dão criticidade para perceber o que atrapalha a caminhada. Quando já não toca o coração, por causa de sua distância no tempo e da frieza de seus ritos, essas tradições devem ser repensadas. A Tradição deve ser fielmente seguida, mas as tradições sofrem – e devem sofrer! – mudanças. Uma pergunta que não quer se calar é: “que princípios podem guiar o nosso discernimento na hora de inovar? Embasados em quê inovamos?”. O grande critério é a revelação fundamental. Sempre devemos nos perguntar: “Essa tradição nos distancia ou nos aproxima da revelação de Deus, acontecido no povo de Israel e na Igreja do tempo apostólico?”. Esse discernimento é a grande tarefa do magistério da Igreja, sempre a serviço da Palavra de Deus. Muitas coisas ditas na Igreja como Tradição não passaram de tradições humanas. Há tradições transitórias, superáveis. Há uma Tradição fundamental que se manifesta em tradições. Isso é muito claro para a teologia atual. Todo o nosso discernimento deve passar pela pessoa de Jesus Cristo, a plenitude da revelação. Às vezes, assistimos na Igreja a um embate ideológico, acima da caridade evangélica. Uns defendendo costumes enrijecidos, outros com o jargão de progressistas, avançados, levantando bandeiras que não pertencem à Tradição da fé. Eis a complexidade humana de experimentar o divino! Essas tradições nos revelam o Cristo? Estão fundamentadas na caridade? Transformam as pessoas? Se sim, é Tradição; se não, é pura criação humana (cf. Mc 7,8).
Pe. Paulo Morais, C.SS.R. Curvelo/MG